![](https://static.wixstatic.com/media/e2b61202db2d4517b0ef2723d8f7892f.jpg/v1/fill/w_1920,h_800,al_c,q_85,enc_avif,quality_auto/e2b61202db2d4517b0ef2723d8f7892f.jpg)
![bg2.jpg](https://static.wixstatic.com/media/b11253_a84456e41f7f4a0e85147a430b71eb78~mv2_d_2312_1519_s_2.jpg/v1/crop/x_12,y_238,w_2289,h_1157/fill/w_981,h_496,al_c,q_85,usm_0.66_1.00_0.01,enc_avif,quality_auto/bg2.jpg)
![bg2.jpg](https://static.wixstatic.com/media/b11253_a84456e41f7f4a0e85147a430b71eb78~mv2_d_2312_1519_s_2.jpg/v1/crop/x_12,y_238,w_2289,h_1157/fill/w_981,h_496,al_c,q_85,usm_0.66_1.00_0.01,enc_avif,quality_auto/bg2.jpg)
![bg2.jpg](https://static.wixstatic.com/media/b11253_a84456e41f7f4a0e85147a430b71eb78~mv2_d_2312_1519_s_2.jpg/v1/crop/x_12,y_238,w_2289,h_1157/fill/w_981,h_496,al_c,q_85,usm_0.66_1.00_0.01,enc_avif,quality_auto/bg2.jpg)
![casoextremo.jpeg](https://static.wixstatic.com/media/b11253_1d8c1f1836034f0a8ad2b0210063dd58~mv2.jpeg/v1/crop/x_0,y_46,w_678,h_345/fill/w_812,h_414,al_c,lg_1,q_80,enc_avif,quality_auto/casoextremo.jpeg)
ANÁLISE
André Penner/ Veja
Na década de 1990, crimes dolosos (quando a morte é considerada intencional) cometidos por policiais eram julgados pela própria Justiça Militar. Seguindo essa regra, o caso Carandiru teve seus trâmites iniciados pelas mãos do promotor Luiz Roque Lombardo, que em apenas um ano conseguiu elaborar a denúncia e foi quem definiu a divisão dos réus pela atuação em cada andar. Segundo Machado, essa iniciativa foi inovadora, “engenhosa” e constitui mais um ineditismo, já que era medida necessária diante da impossibilidade de
![4d818da7d074b8b05060ce754539fb0a.jpg](https://static.wixstatic.com/media/b11253_a37c81ebe1ce4b2fa84a9d9743070c0d~mv2.jpg/v1/crop/x_39,y_0,w_591,h_431/fill/w_590,h_430,al_c,q_80,usm_0.66_1.00_0.01,enc_avif,quality_auto/4d818da7d074b8b05060ce754539fb0a.jpg)
Maíra Machado (Divulgação /CNJ)
A parte analítica deste trabalho é dividida em dois momentos. O primeiro é um texto sobre de que forma o massacre do Carandiru e seu processo na justiça brasileira foi algo inédito e, também, o que mudou após esse caso. O segundo é uma entrevista onde é pensado o funcionamento da justiça brasileira a partir da noção de racionalidade penal moderna, como apresentada por Álvaro Pires no artigo Racionalidade Penal Moderna, Público e Direitos Humanos (Novos Estudos, CEBRAP - março de 2004). Para ambas, conversei com uma grande especialista no assunto, a professora da Fundação Getúlio Vargas e pós-doutora na área de direito penal, Maíra Machado.
PARTE 1
Há vários ineditismos no caso e no processo do Carandiru. Conversando com os promotores e durante pesquisa, elenquei alguns fatos considerados inéditos no direito brasileiro. Para discuti-los, tive a oportunidade de me encontrar com a professora Maíra Machado. Vou apresentá-los a partir dos já citados fatos, agora elencados abaixo:
-
A fala do juiz Rodrigo Tellini: “processo mais complexo do judiciário brasileiro”
-
O uso da autoria incerta para um número tão grande de réus
-
A mudança do processo da Justiça Militar para a Comum
O Caso Carandiru registra o infame recorde de mortos e réus. Nunca antes tantos presos haviam sido executados de uma vez por tantos policiais. Juntando os homicídios com as tentativas, o processo tinha, em princípio, mais de trezentos réus e vítimas. Com passar do tempo, no entanto, os crimes sem morte prescreveram, reduzindo para cerca de setenta réus e cento e onze vítimas.
Maíra Machado estuda e acompanha o Caso Carandiru há anos. Ela é uma das responsáveis pelo portal Memória Massacre, que reúne documentos e toda sorte de materiais produzidos ao longo do tempo sobre a história, incluindo este TCC. Machado pontua que o grau de violência policial ocorrido dentro da Casa de Detenção São Paulo não tem precedentes. Também não há registro de outra situação em que provas materiais tivessem sido adulteradas no nível em que ocorreu: o prédio foi limpo, armas sumiram, balas foram retiradas das paredes e dos corpos dos presos mortos após a perícia. Esse somatório de fatos torna a atuação no processo digna da classificação do doutor Tellini.
se definir quem matou a quem.
A ideia juntou a conhecida divisão da atuação dos grupos da polícia em cada pavilhão (ROTA, Gate, Choque atuaram em separado) com a também conhecida lista de encarcerados em cada andar, o que permitiu estabelecer ao menos quantos policiais mataram quantos detentos e assim acusá-los em grupo.
Mais tarde, o Supremo Tribunal Federal decidiu migrar o processo para a Justiça Civil. Não havia qualquer lei que previsse esse tipo de situação e, mais uma vez, o Carandiru se mostrou inédito no judiciário. Anos depois, exceção se tornou regra e os crimes dolosos passaram a ser julgados, assim como o Massacre, na justiça comum (até o presidente Michel Temer voltar atrás no contexto da intervenção militar no Rio de Janeiro).
Além disso, foi a primeira vez em que se tem notícia de um filme sobre um caso ser usado durante o júri do próprio caso: em 2013 e 2014, os promotores passaram trechos da obra de Hector Babenco para os jurados e os policiais que estavam presentes. “Estavam todos sentados no enorme banco dos réus. Eles (os promotores) apagam as luzes, colocam o som alto em um telão enorme. Foi um impacto sobre o júri. Alguns dos réus viravam a cabeça para não olhar. Nós tínhamos certeza de que eles seriam absolvidos, mas ali passamos a acreditar em condenação”, relembra Machado. A pesquisadora destaca que a história do Carandiru foi explorada e visibilizada por diversas áreas como nenhuma outra antes: Caetano Veloso e Gilberto Gil escreveram a música Haiti, Drauzio Varella escreveu o livro que virou filme com direção de Hector Babenco, muitos jornalistas transformaram a história em livros e o artista plástico Nuno Ramos criou 24 horas de performances na obra 111 Vigília Canto Leitura.
A jornalista Aurora Seles estudou o caso Carandiru e conta que o massacre fez a sociedade mudar a forma como lidava com segurança pública. Alguns meses após o dois de outubro, em janeiro de 1993, foi criada a Secretaria da Administração Penitenciária de São Paulo, a SAP. Até então, e desde 1892, o sistema penitenciário paulista era de responsabilidade da Secretaria da Justiça, explica. Fora isso, em 2008 a justiça penal brasileira passou por uma série de reformas que, embora possam não ter ligação direta com o caso, certamente foram influenciadas por ele. Segundo a professora, a absolvição de Ubiratan, em desacordo com a soberania do júri, criou a necessidade de mudanças. Como explica Machado, em artigo:
"Em tese, o juiz que preside o julgamento deve esclarecer os jurados acerca dos quesitos a serem respondidos e suas consequências. Há, no entanto, uma série de críticas sobre como se dava na prática esse procedimento, especialmente com relação ao fato de que muitas vezes os jurados, ao responderem sobre quesitos formulados em linguagem técnica, não estavam totalmente esclarecidos sobre o conteúdo e as consequências das respostas. Isso motivou mudança no sistema de quesitos e, a partir de 2008, incluiu-se a pergunta "o jurado absolve o réu", com o objetivo de simplificar o questionário"
PARTE DOIS
Álvaro Pires
Neste segundo tópico está transcrita outra parte da entrevista com Maíra Machado. Nela, é abordada a relação entre o caso Carandiru, a realidade da violência policial no Brasil e o artigo A Racionalidade Penal Moderna, o Público e os Direitos Humanos, de Álvaro Pires. Machado trabalhou com Pires e traduziu o artigo em questão.
A racionalidade penal moderna é a lógica sobre a qual a justiça penal se organiza hoje. Ela nasce há duzentos anos, quando as penas negativas passam a ser usadas como resposta aos crimes cometidos e a justiça, então, se configura como crime e punição. A privação de liberdade (e em alguns países até a própria morte) parecem intrínsecas à justiça, como se a reparação ao dano causado necessariamente significasse o sofrimento de quem o causou.
É a partir dessa forma de pensar que a justiça brasileira se construiu. Não há, legalmente, um terceiro caminho fora a absolvição ou a condenação às penas negativas para um processo denunciado e esta forma de pensar está de tal maneira institucionalizada que parece mesmo não haver como fazer justiça de modo diferente. Dificilmente um cidadão conseguiria dizer que “justiça foi feita” em uma situação na qual alguém que comete um roubo não é encarcerado.
Além disso, na racionalidade penal moderna as mídias e o público impactam a justiça. A opinião pública, assim como a repercussão de um caso e a atuação de movimentos sociais passam a influenciar as decisões, muitas vezes direcionando para resultados que não seriam os mais "corretos" juridicamente.
Como a teoria se aplica ao caso Carandiru?
É uma teoria que está tentando explicar porque o direito penal moderno foi formado ao redor dessa obrigação de punir. Ela se refere a ideias anteriores ao advento da prisão: antes de haver prisão, já havia essa amarração [crime e punição] - como o autor explica no texto citando Kant, que é do século 18. Desde aquela época já existia essa noção de que se a pessoa não sofrer, ela não estará pagando o mal que ela cometeu, uma concepção muito ligada ao século 12 e à Igreja Católica.
O que a racionalidade penal moderna nos ajuda a pensar no caso Carandiru é o fato de que a gente não tem disponível um outro jeito de lidar com esse problema a não ser a justiça penal e a punição. Para quem teve contato com os réus durante o interrogatório, ficou claro que os policiais [que cometeram o massacre] viveram uma experiência traumática. O policial que viveu aquilo precisaria ser retirado dali e receber auxílios e para elaborar sobre o que ele viveu e, claro, dentro de uma instituição que não fortalecesse o heroísmo no ato de matar. Então o massacre do Carandiru poderia ter levado a muitas mudanças, mas não houve meios de se fazer isso por conta dessa lógica punitivista.
O promotor Fernando Pereira relatou ter sentido certa frustração por não ter o apoio de movimentos sociais de direitos humanos no momento em que os policiais seriam julgados. Segundo ele, esses grupos cobravam justiça nos anos em que o processo ficou parado, mas não concordavam com a ideia do encarceramento. Como funciona isso na ótica da racionalidade penal moderna?
Essa é uma baita questão. O que o Álvaro chama atenção no texto é algo paradoxal dos movimentos de direitos humanos: eles demandam uma punição, mas nesse tipo de manifestação valores podem ser perdidos de vista. O movimento negro [pede] a punição em crimes de racismo, o movimento feminista [pede] a punição em casos de violência doméstica e os valores são as causas que eles querem fortalecer: uma sociedade sem racismo, sem machismo, sem violência da polícia. Há, porém, vários meios de promover esse valor. Será que a justiça criminal é o meio mais interessante para isso?
No caso do Carandiru, eu acho muito compreensível [o não apoio ao Ministério Público], porque é nas mãos do MP que as mortes praticadas pela polícia são arquivadas. E também tem o fato de que os réus eram os praças, os soldados, enquanto que às autoridades civis não aconteceu absolutamente nada.
Além disso, os movimentos de direitos humanos tinham muitas pautas para tratar. Foi também nessa época que começou a explosão do encarceramento feminino, após a lei antidrogas. A minha leitura é a de que eles disseram “nós temos muitos temas em que atuar, esse não vai ser uma bandeira nossa”.
Diante dessa lógica punitiva, como se encaixa a noção social de que policiais que matam bandidos fazem “um favor à sociedade” e devem ser deixados impunes? Há, dentro da racionalidade penal moderna, níveis diferentes de pessoas a quem a lei se aplica?
A racionalidade penal moderna é compatível com zonas de blindagem. Por que na corrupção ninguém é punido, por exemplo? Há várias pessoas blindadas à justiça penal - até pouco tempo atrás, o marido que batia na mulher também estava blindado.
Há várias zonas em que esse elemento punitivista não entra e isso engloba pessoas e fatos. E a teoria da racionalidade penal moderna não foi pensada para esses casos, mas é algo que hoje a gente observa como situações diferentes em diferentes países, porque isso vem da sociedade e dos seus valores.
O tribunal do júri brasileiro pode ser considerado uma instituição nascida da racionalidade penal moderna, em que a opinião pública passa a ter um peso nas decisões judiciais e pessoas sem conhecimento específico da área passam a julgar?
Sim. A lógica de segurança pública em São Paulo é a mesma desde o massacre do Carandiru, é a mesma pauta em todos os governos, portanto há um respaldo muito grande da população. Mas o direito não é político, ele é contra-majoritário. É necessário haver um espaço em que o que conta não é o que a população acha. O fato de haver tribunal do júri bagunça essa separação [sociedade e direito], e é justamente o que permite que esse tipo de lógica da sociedade civil extremamente punitivista entre no direito - e com força. A decisão do tribunal do júri não precisa ser fundamentada, não precisa argumentar, basta que sejam convencidos pelo discurso ou pelo quanto chocados ficaram com o filme, por exemplo. A razão da condenação pode estar completamente deslocada do direito.
Minhas conclusões
A Racionalidade Penal Moderna coloca a questão de que a relação entre crime e punição, aparentemente tão natural, é uma construção e de que é necessário olhar de forma crítica para ela. Mais que isso: trazida ao direito brasileiro, essa noção é soberana, não há alternativas aos promotores e juízes para fugir da dualidade absolvição ou condenação.
Não é de se surpreender, porém, o fato de que a realidade extrapola qualquer teoria, inclusive a do direito. O que a professora Maíra Machado chama de "zonas de blindagem" me pareceu ser a lógica punitivista levada ao extremo: em um país onde não há pena de morte, há um aval social para que os subversivos sejam mortos e, tão grave quanto, há o aval, não apenas social mas dentro do sistema jurídico, para que os assassinos dessas pessoas não sejam punidos. Aparenta ser um paradoxo da própria lógica punitivista, que cria classes de pessoas "matáveis" e de assassinos "absolvíveis".
De certa forma, a teoria prevê que haja distorções dentro do punitivismo porque ela reconhece a interferência da sociedade no direito. Porém, a prática vai sempre além do que as análises alcançam.
O que um caso como o Carandiru tem de diferente, do ponto de vista analítico, é que ele permite ver o nível a que isso chega. É sabido que muitos policiais têm seus processos arquivados por assassinatos, porém a absolvição em um contexto massacre é simbólica e gritante. Ela é o reconhecimento de que, sim, há um tratamento diferente quando a vítima tem um certo histórico e de que a justiça brasileira é conivente com isso. E é, infelizmente, um encorajamento para que continue acontecendo.
Além disso, o caso Carandiru demonstra de modo claro o papel dos meios de comunicação em levar para a população conhecimento de casos como este. Para todos os promotores, foi a comoção popular que levou o STF a transferir o processo da Justiça Militar para a Comum, algo que sequer tinha previsão na lei. Isso também a teoria da Racionalidade Penal Moderna descreve que pode ocorrer, não necessariamente trazendo bons resultados. Afinal, a mesma justiça que condenou em primeira instância absolveu a todos na segunda.
Ainda assim, a comunicação é essencial para a democracia, porque é a voz e a memória de casos como o massacre Carandiru (que permanece sem respostas depois de tanto tempo e cujo maior elemento de memória, seus edifícios, virou área de lazer). E é quem cobra que o sistema funcione e que a justiça ocorra, ainda que em seus moldes punitivistas.