O procurador ganhou do presidente FHC o prêmio de Direito Humanos por sua atuação, ao lado de Norberto Joia, no processo do Coronel Ubiratan
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(Reprodução / Tribunal de Justiça Militar SP)
Quando o massacre do Carandiru aconteceu, em 1992, o procurador aposentado Felipe Locke Cavalcanti era promotor na Justiça Militar do Estado de São Paulo - a mesma que em um primeiro momento recebeu o processo. O caso, no entanto, foi parar nas mãos de outro promotor, o veterano Luiz Roque Lombardo, que fez a primeira denúncia antes de o processo migrar para justiça comum.
Nove anos depois, Locke integrava o Segundo Tribunal do Júri, alocado em Santana, zona norte de São Paulo. O caso que não havia pego anos antes, então, chega às suas mãos. Ao lado do companheiro e amigo Norberto Joia, Locke assume a acusação contra o Coronel Ubiratan, o líder da desastrosa ação da polícia dentro do presídio. A decisão, ele conta, foi quase espontânea: após uma reunião dos promotores do tribunal saíram os nomes deles dois, que não hesitaram em aceitar a função.
Felipe Locke Cavalcanti iniciou a carreira no Ministério Público em 1988. Aos 23 anos, se classificou em primeiro lugar para o posto. Passou pela Justiça Militar, depois ficou por nove anos e 500 júris no Segundo Tribunal do Júri, em sequência assumiu o cargo de procurador, se tornou presidente da Associação Paulista do Ministério Público. Foi também conselheiro do Conselho Nacional de Justiça.
Já tinha, portanto, mais de treze anos de atuação quando decidiu encarar o maior massacre de presos da história do Brasil - caso que lhe renderia, no mesmo ano, o Prêmio Nacional de Direitos Humanos, dado pelo então Presidente da República Fernando Henrique Cardoso.
Ele conta que o primeiro passo de tudo foi parar para analisar e coletar documentos. Embora até hoje se lembre bem de ver na televisão a notícia da rebelião no presídio, em uma sexta-feira à tarde, Locke não conhecia o caso a fundo.
O Coronel Ubiratan havia se elegido suplente de deputado estadual pelo Partido Progressista Brasileiro em 1994, e pelo direito ao foro privilegiado seu caso foi parar nas mãos do Tribunal de Justiça. Só que, à época, era preciso autorização do Legislativo para processar parlamentares, e ela não foi concedida no caso do Coronel, deixando o processo parado. Dois anos depois, Ubiratan saiu do cargo de suplente, o que levou o processo de volta para a primeira instância.
O procurador explica que foi quase um mês de dedicação exclusiva ao processo de mais de uma centena de volumes. Entre as tarefas, ele e Norberto se dedicaram a pesquisar o passado dos policiais e a elaborar uma estratégia de acusação que pudesse esclarecer aos jurados a razão de Guimarães culpado. Locke faz questão de frisar que a estratégia e a atuação da promotoria no júri do Ubiratan foi estritamente "técnica: não apaixonada e sem apelo emocional”. Enquanto muitos juízes decidem a sentença de um caso a partir de uma tese que é apresentada, seja pela promotoria, seja pela defesa, o tribunal do júri, de acordo com o procurador, se guia pelos fatos.
Os então promotores tiveram a ajuda também do jornalista Caco Barcellos, que no mesmo ano do massacre havia lançado o livro Rota 66, obra que retrata o cenário da polícia da década de 1990 no estado de São Paulo a partir do assassinato de um grupo de estudantes de classe média alta. Alguns réus do Carandiru estavam no livro. O jornalista cedeu não apenas exemplares para os jurados, mas o seu material original de investigação, guardado na casa de uma professora amiga sua.
No início dos anos 2000, os julgamentos em tribunais do juri eram diferentes. Todas as peças e excertos que a acusação quisesse apresentar para os jurados era lida em voz alta. Locke explica que eram horas e horas de leitura, às vezes de capítulos inteiros de livros (para o processo, ele e Norberto separaram seis), de laudos periciais (o do caso tinha 41 páginas). Isso resultava em julgamentos que duravam vários dias.
Da primeira vez que o julgamento do Coronel Ubiratan aconteceu, logo no segundo dia um jurado ficou doente, obrigando o grupo inteiro de sete jurados a ser dissolvido e o julgamento remarcado. Meses depois, começou em definitivo o julgamento que durou cerca de dez dias - em um deles caiu o aniversário de 46 anos do procurador, que recorda ter saído tão tarde da sessão que não teve como comemorar.
Outra diferença é que as perguntas para o réu só podiam ser feitas pelo juiz, não pelos promotores. Hoje, uma estratégia muito usada para demonstrar contradições nas perguntas, como fez Eduardo Olavo Canto Neto no julgamento dos policiais, antes ficava limitada à boa vontade do juiz de fazer as perguntas certas. E o procurador relembra que a juíza Maria Cristina Cotofre foi extremamente bem preparada. “Ela perguntou ao Ubiratan ‘Por que o senhor entrou armado com uma metralhadora no presídio?’ e ele respondeu de forma ríspida, grosseira”, relata. As atitudes arrogantes do Coronel prejudicavam a sua defesa.
Com a estratégia de apresentar os fatos de forma técnica, com o apoio de livros, imagens e os documentos produzidos pela Justiça, a acusação conseguiu condenar Ubiratan a 632 anos de prisão. As perguntas que os jurados respondem demonstraram placares bastante favoráveis às teses do MP, como um 7 a zero na afirmação de que o Coronel foi co-autor do massacre. No entanto, réu primário com residência fixa, Ubiratan teve direito a recorrer em liberdade.
No meio tempo entre a condenação e o recurso da defesa, Ubiratan se reelegeu deputado e, mais uma vez, ganhou o direito ao foro privilegiado. No caso, significou que ao invés de ser julgado por um trio de desembargadores, ele teria seu recurso analisado por um órgão especial com vinte e um deles. Em decisão que opôs dois a dezenove, o coronel foi absolvido.
“Se fosse um processo comum, ele teria perdido, porque o relator e o revisor do caso votaram contra a absolvição. Foi uma decisão absurda”.
Locke explica que os desembargadores contrariaram a posição do relator e do revisor, justamente os que estudam e analisam primeiro o caso, e acolheram a tese de que, se os policiais agiram em estrito cumprimento do dever legal, não teria como haver excesso. “Reinterpretaram a decisão do júri. Uma barbaridade jurídica”.
Antes que pudessem recorrer, o Coronel Ubiratan foi assassinado e o caso, arquivado. Quando morreu, preparava sua candidatura para reeleição como deputado estadual.
Locke hoje acompanha de longe o andamento do caso Carandiru que restou: a condenação dos policiais. Novamente, o Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu contra o julgamento do tribunal do júri e, apesar do desembargador Ivan Sartori pedir a absolvição dos condenados, a turma decidiu por fim que deveria haver novo julgamento - a que o Ministério Público recorreu. “Minha impressão é que o Supremo Tribunal de Justiça vai decidir por restabelecer a decisão da primeira instância”, pondera.
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