Parceiro de Eduardo Olavo Canto e Fernando Pereira, atuou na condenação dos policiais
(Reprodução / Eduardo Anizelli / Folhapress)
Márcio Friggi de Carvalho é, desde 2013, o promotor de justiça do Ministério Público de São Paulo responsável pela acusação no julgamento do caso Carandiru. Ele atua ao lado de Eduardo Olavo Canto, mas antes dos dois e ao longo dos vinte e seis anos desde o massacre estiveram à frente do caso, em júris, ao menos cinco outros promotores e envolvidos direta ou indiretamente, um sem número de peritos, auxiliares, analistas, advogados, jurados e juízes.
O promotor Friggi tinha 13 anos quando o massacre do Carandiru ocorreu e, quando assumiu a acusação, 34. A pouca idade até hoje é algo que chama atenção no promotor que, apesar da grande segurança ao falar, aparenta menos que seus quase quarenta anos. Márcio, ao longo da carreira de pouco mais de uma década e meia, atuou em casos famosos como o assassinato do ex-prefeito de Santo André, o petista Celso Daniel, e a máfia dos transplantes de rins de Taubaté. Nos dois casos, saiu vitorioso com sua tese acolhida pelo júri e todos os acusados com ao menos dezessete anos de prisão.
Ao primeiro contato com Márcio não é difícil imaginar como ele consegue convencer grupos de pessoas que nada têm a ver com direito, que um dia se voluntariaram e foram selecionadas de modo aleatório, através de sorteios, para participar forçosamente de longas horas de julgamentos de casos dos quais muitas vezes sequer ouviram falar. Esse é o tribunal do júri, que em semanas mais puxadas o promotor precisa encarar até duas vezes, no Fórum Regional I de Santana, onde ficam os promotores do Segundo Tribunal do Júri. Sobram três dias para analisar os processos e elaborar estratégias de acusação. No local em que trabalha não há salas separadas: Márcio divide o espaço com seis outros promotores, incluindo Norberto Joia, e cada um possui sua mesa, um computador e pilhas de papéis de processos que chegam constantemente.
Seu currículo impressiona pela velocidade com que as grandes responsabilidades chegaram até ele. Formou-se na Faculdade de Direito de Franca, interior de São Paulo, e dois anos depois assumiu o cargo de promotor, onde está desde então e onde lida com alguns dos casos mais polêmicos do país. A eloquência na fala é também característica da outra carreira que leva em paralelo, a de professor de Direito Processual Penal na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Com um extenso Currículo Lattes, mestrado defendido e doutorado em curso, Márcio aparenta saber muito bem do que fala. Sua didática é elogiada pelos alunos que costumam o considerar um dos melhores professores do curso.
E foi seu histórico que contribuiu para que fosse o escolhido pelo então Procurador Geral de Justiça de São Paulo, Márcio Fernando Elias Rosa, para assumir, no início de 2013, o caso Carandiru, quando o promotor responsável Fernando Pereira da Silva percebeu que precisaria de alguém para ajudá-lo. Vinte e um anos depois do massacre, a história do Carandiru foi transformada em livros, filme e um processo de mais de 100 volumes que somados atingem mais de duas dezenas de milhares de páginas. O promotor aceitou de pronto o trabalho, mesmo sem ter dimensão do tamanho do desafio e esquecendo por um instante que havia começado seu projeto de mestrado, ainda em curso e também na PUC, dois anos antes. (Em meio a tantas tarefas, essa responsabilidade acabou sendo deixada de lado, e a defesa só foi ocorrer em 2014).
Márcio conta que lembrava muito pouco da história, tão repercutida, porque quando aconteceu nem sequer pensava em que carreira seguir. Pré-adolescente e vivendo no interior de São Paulo, quase não guardou memórias do dia em que 111 presos foram assassinados por policiais dentro dos pavilhões do presídio Carandiru, zona Norte da capital paulista. “Por um lado isso é bom, porque [como os outros promotores tinham mesma faixa etária] não tinha ninguém contaminado com questões externas do que se pensava à época, ou pessoas da Polícia Militar ligadas a mim. Todo mundo absolutamente isento”, explica.
Então, antes do primeiro júri, teve que estudar o enorme volume de material produzido ao longo do tempo, desde os mais antigos, da época em que a internet ainda engatinhava e portanto existente somente em pilhas de papéis, até os dados mais recentes, digitalizados. Tudo em quarenta dias.
"Os exames necroscópicos demonstram que os tiros são direcionados em direções vitais. A grande maioria dos presos recebeu tiros na cabeça, pescoço ou peito”.
As tarefas de definir estratégias, dividir funções e estudar o caso se transformaram em uma maratona contra o tempo, já que o primeiro júri tinha data marcada: janeiro de 2013. Para dar conta de tudo, Márcio ficou afastado da promotoria e de suas funções habituais. Passou quase um mês e meio trancado dentro de casa, lendo e anotando durante praticamente todas as horas em que esteve acordado. “Eu ficava o dia inteiro fazendo Carandiru, só pensando em Carandiru”. O tempo recluso foi um desafio físico e emocional para Márcio, mas também para a sua família e para a então namorada, que acabou não sabendo lidar com a ausência do companheiro.
A tese da acusação é de que houve “excesso”, termo técnico para dizer que os policiais, com a dita intenção de estancar um motim de presos, fizeram muito mais do que deveriam e poderiam. Márcio não têm a menor dúvida de que, quando os policiais entraram no pavilhão nove, estavam dispostos a matar quem cruzasse o seu caminho. “As provas deixaram claro que foi uma ação muito dirigida a aniquilar o problema, não com focos específicos. Mas quem estivesse na frente”. A defesa, por sua vez, teve que lidar com réus confessos (a grande maioria admitiu ter dado tiros naquele dia), mas que afirmavam ter reagido a um confronto contra os presos, segundo eles, também armados. Márcio rebate: “Os policiais militares plantaram armas para justificar a cena do crime. Os exames necroscópicos demonstram que os tiros são direcionados em direções vitais. A grande maioria dos presos recebeu tiros na cabeça, pescoço ou peito”.
Ao contrário do que se possa imaginar em uma caso que, como esse, envolve instituições fortes como a Polícia Militar, Friggi afirma não ter sofrido nenhum tipo de ameaça ou coerção, e nem saber de algum outro promotor que tenha passado por algo parecido. A pressão, ele explica, existe nas relações pessoais em uma sociedade que entende justiça como a morte de todos os infratores. “Existe uma pressão externa, do círculo de relacionamento que não conhece o processo. Houve pessoas próximas a mim afirmando que ‘eram bandidos, tinha é que dar medalha para os policiais’, mas da corporação [da polícia], de jeito nenhum”.
Em meio à exaustiva rotina de estudos, à solidão e até ao término, o trabalho foi feito e o dia dos júris chegou. Enquanto Fernando apresentou a tese para o público, com uma fala técnica e detalhada, Márcio foi o responsável pela réplica na fase de debates entre acusação e defesa. Sua eloquência e dramaticidade foram consideradas fator decisivo para convencer os sete jurados e para o resultado vitorioso de 156 anos de condenação aos 26 policiais julgados. No segundo julgamento que participou, ao lado de Eduardo Canto, declamou a música Haiti, de Gilberto Gil - enquanto a defesa apelava para Roberto Carlos, com É Preciso Saber Viver (indiretamente clamando ao júri para escolher o “bem” e não o “mal”).
Apesar de ser considerado um promotor que utiliza a emoção para tocar o júri, quando fala do Carandiru, Friggi parece pensar em cada palavra, racionalizando cuidadosamente o seu discurso e passando longe de qualquer emotividade. Perguntado se teve algum caso específico, alguma morte mais brutal ou história que lhe chamou a atenção, dentre tantos presos assassinados friamente no Carandiru, ele responde sem afetação e volta a sua fala para o trabalho técnico feito: “O que marca muito é a clareza da execução. A perícia que foi feita no local foi crucial para a definição do caso. Os corpos foram todos removidos e amontoados no primeiro andar. É uma cena muito chocante, mas além da cena em si, que por si só é marcante, o perito foi excepcional em ter o cuidado de analisar todos os furinhos, de todos os andares, de todo o pavilhão nove. Ele foi impecável”.
"O Superior Tribunal de Justiça já deu um sinal de que o nosso Tribunal de Justiça foi omisso. Como é possível anular um trabalho dessa envergadura? Não foi um júri, foram vários, em que a sociedade decidiu em um mesmo sentido"
A decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, que anulou as condenações do júri e decidiu pedir que fossem feitos novamente, para o promotor, sinaliza uma intenção prévia, um julgamento ideologicamente contaminado. "O Superior Tribunal de Justiça já deu um sinal de que o nosso Tribunal de Justiça foi omisso. Como é possível anular um trabalho dessa envergadura? Não foi um júri, foram vários em que a sociedade decidiu em um mesmo sentido".
Apesar de as medidas contrárias que acabam por prolongar o processo e o cumprimento da justiça, ele se diz otimista e acredita na turma do STJ para validar a decisão dos jurados e o trabalho da promotoria.
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