Ao lado de Felipe Locke Cavalcanti, o promotor veterano foi o responsável pela condenação do Coronel Ubiratan a 632 anos de prisão
(Reprodução / Canal Futura)
O promotor de justiça Norberto Joia está há mais de trinta anos no Ministério Público. Quando esteve em frente ao júri pedindo a condenação do Coronel Ubiratan, em 2006, já estava para completar vinte anos na função.
Norberto Joia é alto, tem olhos claros, bigode grisalho e fala com segurança. Formou-se na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e alguns anos depois assumiu o cargo no II Tribunal do Júri, alocado no Fórum Regional I de Santana, assim como Márcio Friggi, e compartilha a sala com outros seis promotores. Atrás de sua mesa tem encadernados alguns casos nos quais atuou e de que se orgulha. O Carandiru é o maior deles. Em enormes livros de capa dura preta, com inscrições em dourado, há ao menos cinco volumes do processo na sua estante.
Ao longo das décadas como promotor, Joia atuou em casos repercutidos como o do casal de policiais Pesseghini, mortos em 2013 sob a suspeita de que o crime teria sido cometido pelo próprio filho, de 13 anos. A polícia concluiu que o menino teria assassinado os pais, assim como a avó, e se suicidado depois. Joia ainda esteve à frente da acusação em um dos casos mais famosos do país, o assassinato de Liana Friedenbach e Felippe Caffé. Em 2007, após o tribunal do júri, o réu Pernambuco foi condenado a 110 anos de prisão teria sido um dos cinco responsáveis pela morte de Felipe e estupro e morte de Liana.
O caso Carandiru oficialmente chegou às suas mãos, e de outros promotores do II Tribunal do Júri, em 1995. Durante os três anos que separam o acontecimento do massacre do momento em que ele chega ao Ministério Público de São Paulo houve um período de adaptação dos trâmites. Isso porque originalmente o processo estava na Justiça Militar, foi lá inclusive que a primeira denúncia foi feita, pelo promotor Luiz Roque Lombardo. No entanto, acabou passando para a justiça comum, em uma movimentação inédita e que não encontrava respaldo na legislação, por decisão do Supremo Tribunal de Justiça. A adequação do formato levou algum tempo e demandou o trabalho de diversos promotores.
Norberto, no entanto, já tinha alguma experiência com o Carandiru. O promotor havia sido responsável por outros processos vindos do presídio, que tinha uma atividade relativamente frequente e costumeira para quem lidava com ela. Ainda se manteve atuante no caso durante 17 anos, de 1995 a 2012, mas até hoje acompanha à distância e com olhar atento cada etapa do processo.
Por uma sugestão do primeiro promotor a denunciar a ação da Polícia, Roque Lombardo, o processo do Carandiru se tornou uma acusação coletiva, chamada de "autoria incerta": como não seria possível definir com precisão quem atirou, quantas vezes, quantos matou, por razões como o desaparecimento de diversas provas (de armas a coletes) e os incontáveis tiros dados, os policiais foram levados à júri juntos. À parte ficou o caso do Coronel Ubiratan, o responsável pela ação desastrosa que reuniu Gate, Rota e Batalhão de Choque dentro do presídio. Ao lado do procurador aposentado Felipe Locke Cavalcanti, Joia assumiu este que descreve como um caso “juridicamente mais simples”, com um único réu e uma acusação específica de responsabilidade sobre 111 homicídios por omissão.
“Processos contra agentes do Estado nós temos que fazer duas, três vezes”
Os dois, quando oficialmente assumiram a função, em 2000, passaram cerca de um mês apenas estudando o caso, levantando dados sobre os presos mortos, articulando a estratégia da acusação.
O Ministério Público sustentava que o Coronel sabia o que estava fazendo quando sugeriu levar para dentro do Carandiru tropas que não tinham hábito de conter rebeliões em presídios, como a Rota e o Gate, que nem sequer usam escudos, mas metralhadoras, como defesa. O Coronel Ubiratan, afirmavam Joia e Locke, sabia da existência do Plano Boreal, um manual com instruções e estratégias para conter rebeliões no presídio, e que deixava claro que essas polícias de elite não deveriam cumprir esse papel. A defesa, por outro lado, alegou que o coronel nada fez além do estrito cumprimento do seu dever legal e exigia que fosse reconhecida a inexigibilidade de conduta diferente da que ele tomou. Ou seja, que ele fez unicamente o que era necessário.
O caso foi enviado para tribunal do júri, que é um modelo de audiência onde o responsável pela decisão não é o juiz, mas um grupo de sete pessoas que um dia se candidataram voluntariamente e são escolhidas por sorteio, de modo aleatório. Esse grupo precisa ser convencido por um dos lados e ao final responde “sim” ou “não” para uma série de perguntas, decidindo, assim, se o réu é culpado ou inocente.
Essas pessoas, que não necessariamente têm conhecimentos jurídicos e do caso que vão julgar, ficam isoladas enquanto durar o julgamento - o que pode ser dias -, sem telefone, rádio e meios de comunicação. Aproveitando essa situação, os promotores criaram um “kit jurado” com uma série de materiais que ajudariam esse grupo a se inteirar no assunto. Entre as obras que integraram o kit estão o livro Rota 66, do jornalista Caco Barcellos, que fez questão de ceder os exemplares para o Ministério Público usar na acusação, o livro História de Um Massacre, editado pela OAB, além de um laudo do local do crime feito pela Anistia Internacional.
A estratégia foi um esforço para driblar a mentalidade da época, que conta Norberto, era de que os presos “morreram porque mereceram”. Esta ideia, inclusive, foi sentida em reuniões familiares e quando estava com amigos, momentos em que o promotor ouviu frases de deboche e piadas sobre o trabalho que assumiu. “Muita bala para pouco bandido” e outras frases aparentemente sem maldade revelavam a forma como a sociedade olhava para os 111 mortos.
Após dez dias de júri, o Coronel Ubiratan foi condenado por unanimidade a 632 anos de prisão por 102 mortes e cinco tentativas de homicídio. Antes que fosse preso, no entanto, a defesa do Coronel recorreu e em liberdade (por ter endereço fixo e ser réu primário) ele esperou mais cinco anos até que um novo julgamento, agora em segunda instância, ocorresse. No meio tempo, entretanto, Ubiratan se candidatou a deputado estadual pelo Partido Progressista Brasileiro com o número 11190 e foi eleito em 2002. Embora garantisse que a numeração nada tinha a ver com o número de assassinados no massacre, quatro anos depois ele tentou reeleição, desta vez pelo Partido Trabalhista Brasileiro, com o número 14111.
Além de ser um personagem influente dentro da corporação, o fato de Ubiratan ter assumido um cargo público fez com que sua situação mudasse na segunda instância. Ao invés de ser julgado por um trio de desembargadores, ele teria sua situação analisada por um órgão especial do Tribunal de Justiça que reuniu vinte e dois desembargadores. Tanto o relator Mohamed Amaro, quanto o revisor Roberto Vallim Bellochi, consideraram que o réu era culpado. Mas foram voto vencido e Ubiratan foi absolvido por Celso Limongi, José Cardinalle, Denser de Sá, Luiz Tâmbara, Jarbas Mazzoni, Paulo Franco, Barbosa Pereira, Ruy Camilo, Passos de Freitas, Roberto Stucchi, Marcos Cesar, Munhoz Soares, Laerte Nordi, Sousa Lima, Canguçu de Almeida, Debatin Cardoso, Marcos Andrade Reis Kuntz, Barreto Fonseca, Aloísio de Toledo César e Correia Viana.
Pouco tempo depois o Coronel foi assassinado, em um crime até hoje não resolvido.
Para Norberto Joia, o resultado já era esperado, embora considere a decisão completamente equivocada. Sem desanimar, comenta que "processos contra agentes do Estado nós temos que fazer duas, três vezes".
Até hoje Norberto Joia acompanha o processo do massacre que não consegue esquecer, não só por ter participado da acusação, mas também porque a data que ocorreu coincide com o seu aniversário de casamento, fazendo com que todo ano o promotor (e sua esposa) relembrem o caso. Ele crê que a sociedade da década de 1990 e início dos anos 2000 era mais avessa à condenação de policiais que a atual e, portanto, acredita que a justiça ocorrerá.
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