Primeiro a promover a acusação dos policiais, participou de dois júris em 2013 com Márcio Friggi e Eduardo Olavo Canto
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(Reprodução / Daniel Guimarães / AE)
Fernando Pereira era promotor em Praia Grande, há 8 anos, quando em 2011 se transferiu para o Fórum Regional de Santana, em São Paulo. Um ano mais tarde, o Caso Carandiru chegou a suas mãos. O processo estava parado há praticamente uma década por conta de trâmites burocráticos e não havia previsão de ser retomando. A última movimentação em primeira instância havia sido em 2001, quando houve o julgamento que condenou o Coronel Ubiratan a 632 anos de cadeia - que depois o Tribunal de Justiça de São Paulo anulou, votando pela absolvição. Sem prazo, aos poucos o promotor foi se inteirando do processo de quase vinte anos e vinte mil páginas.
Em janeiro de 2012, ano em que completaria o vigésimo aniversário do massacre, ele conta que foi “avisado pela imprensa de que o julgamento aconteceria”. Os jornais e revistas, se aproveitando da efeméride, preparavam matérias expondo a demora da justiça em dar solução para o caso. Mais rápida que a imprensa foi a Vara do Júri de Santana, que cinco dias antes do 2 de outubro marcou o julgamento. Seria em janeiro do ano seguinte.
“Às vésperas de o caso completar vinte anos, eu fui surpreendido pela imprensa com a notícia de que estava marcado o julgamento. Não chegou nenhuma informação e não havia nenhuma providência nova no processo”
Coube à Pereira elaborar a acusação para o júri dos outros 74 policiais envolvidos no massacre. No ano em que ocorreu, em 1992, Fernando tinha apenas treze anos e se recorda de estar com seu pai, o radialista Zé Pereira, na rádio Jovem Pan, em São Paulo. Nem sequer cogitava ainda seguir o caminho do direito - o que foi decidir só anos mais tarde, em meio a dúvida de se a carreira de jornalismo seria escolha mais adequada. Durante a faculdade, pôde estagiar nas duas áreas e escolheu o caminho que o levou a atuar no maior massacre de presidiários do Brasil.
A primeira providência que tomou como responsável pelo caso foi atualizar cópias: foram digitalizadas quase cinquenta mil folhas. A segunda foi convidar o promotor Márcio Friggi, que estava no Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado de São Paulo (GAECO) para atuar em conjunto. Fizeram o primeiro julgamento juntos, porém compromissos e um mestrado em andamento impediram a participação de Friggi no segundo júri, para o qual Pereira convidou Eduardo Olavo Canto.
“De janeiro a junho de 2013, minha vida parou completamente”. Durante o primeiro julgamento, dia 18 de abril, a filha do promotor fazia aniversário de um ano. Por sorte, o expediente encerrou um pouco antes, permitindo a comemoração - que não durou muito porque o promotor teve que voltar ao escritório para continuar estudando o caso. Todo o material do processo foi levado para um prédio do Ministério Público na rua Dr. Rafael de Barros, onde o promotor passou a fazer a preparação para os júris. Afastado de suas atribuições regulares, o expediente passou a ser de domingo a domingo. Pereira relembra que “durante um dos julgamentos, houve um atentado à maratona de Boston e eu nem sequer sabia do que acontecia”. As pessoas comentavam do acontecimento e da posterior perseguição, mas ele não acompanhava o noticiário.
A esposa, que é juíza, compreendeu a situação e foi o apoio fundamental para sustentar a situação em casa. O apoio familiar, recorda, também foi essencial para lidar com as piadas e constrangimentos pelos quais passaram os responsáveis pelo processo. Pereira explica que sempre frisou que a disputa judicial não era uma briga contra a PM.
Um dos maiores desafios dos promotores era lidar com uma causa considerada perdida, e mesmo dentro do júri não acreditava-se que pudesse ter um resultado favorável à condenação. Em casos de julgamentos de policiais militares, explica, é difícil ter a condenação mesmo com provas muito claras porque há uma mentalidade de que a morte de “bandidos” não é um crime como os outros. “Nas enquetes de sites, 90% das pessoas votavam pela absolvição”, relembra. O primeiro julgamento foi a quebra do paradigma de que poderia, sim, haver a condenação.
A maioria dos jurados era formada por jovens, alguns dos quais não chegaram a viver a época do massacre. A acusação foi pensada de modo a desconstruir a mentalidade de que a polícia “tem que matar mesmo”: era preciso mostrar que esse imaginário tinha consequências reais não só na vida de quem comete crimes, mas também na vida de todos os cidadãos. Para isso, recorreram ao livro do jornalista Caco Barcellos, Rota 66 - já utilizado no bem sucedido júri do Coronel Ubiratan anos antes -, à obra de Dráuzio Varella que virou o longa Carandiru: o Filme, de Hector Babenco.
Outra grande dificuldade a ser driblada, explica, era o tempo. Com poucas horas para convencer os jurados, o caso exigiu criatividade para elaborar uma acusação convincente. Uma técnica tradicional em julgamentos é ler o laudo necroscópico da vítima para o júri, mas não havia tempo de ler sobre cada um das dezenas de presos que morreram. Além disso, os promotores produziram vídeos com notícias da época e exibiram trechos do filme - cuja verossimilhança em diversos trechos é destacada pelo promotor. “No filme entra um policial logo na frente, pega um preso e pede a ele que mostre o caminho. Foi exatamente assim que aconteceu”. Trechos de interrogatórios foram utilizados para explicar aos jurados o que aconteceu, com perguntas que esclareciam, por exemplo, o funcionamento da justiça militar direcionadas a militares de alto escalão.
A Fernando coube a parte técnica de apresentação do caso, e a Márcio coube a exposição considerada pela imprensa como “emotiva”, que apela à sensibilidade do jurado. Ele usou a letra da canção Haiti, de Gilberto Gil, para expor a questão como algo que aflige a toda a sociedade. “A gente selecionou duas ou três histórias para apresentar aos jurados. Uma delas foi o caso de um homem [entre os mortos] que roubou um toca-fitas”.
O terceiro desafio era encarar a defesa, que utilizou o histórico dos presos para demonstrar como os mortos não eram “pessoas de bem”, que levou ao júri policiais deficientes e com sequelas de trabalho. Tinha também a "vantagem" de que, mais de vinte anos depois do massacre, a maioria dos réus já eram idosos.
Em contrapartida, os promotores também buscaram o histórico dos policiais de torturas e execuções. Pereira explica: “levantei uma matéria do fantástico, feita pelo Caco Barcellos em 1988, que envolvia quatro policiais que estavam no julgamentos, que era um caso de tortura de um menino”. A estratégia foi usada tanto no primeiro julgamento, ao lado de Márcio Friggi, quanto no segundo, com Eduardo Olavo Canto.
"O motivo da atuação lá dentro [do presídio], acredito que era a certeza da impunidade, de que nada aconteceria com eles [os policiais]. Nessa época, havia casos e mais casos de mortes absurdas de presos que eram arquivados na justiça militar. Os históricos que eu vi de antes de 1995 eram de arquivamentos absurdos"
O promotor conta que se decepcionou com as organizações de direitos humanos, porque se mantiveram distantes do Ministério Público quando este buscou o apoio nos períodos de júris. "Procurei as instituições para mobilização, assim como houve na época do Ubiratan", no entanto, esses grupos que queriam o reconhecimento do massacre se disseram indispostos às mobilizações por serem contrários à política de encarceramento e pelo que o Fórum Criminal da Barra Funda representava para a sociedade. “Queremos que sejam condenados, mas não sejam aprisionados”, recorda o promotor.
Após os dois primeiros júris, que terminaram com a improvável condenação dos acusados, Fernando Pereira deixou o caso por conta de uma transferência de área. O terceiro e o quarto julgamentos ficaram com Canto e Friggi.
Em segunda instância, porém, o Tribunal de Justiça de São Paulo absolveu todos os policiais alegando que faltou a individualização da pena, já que alguns policiais foram absolvidos pelo Ministério Público e outros não, e que "óbvios" exames de balística não foram feitos. Para Fernando, isso é um erro porque o julgamento coletivo já havia sido previamente autorizado pelo próprio tribunal antes do começo do processo. Já as perícias foram consideradas impossíveis de serem feitas, por conta de alterações na cena do crime, como armas que desapareceram e balas que se desintegraram.
Para Pereira, a prisão dos culpados mesmo após mais de duas décadas deve haver como uma forma de justiça, de mostrar que ninguém está acima da lei e que um histórico com crimes não cria pessoas sem importância e "assassináveis".
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